Quem transita em dois mundos, em duas vidas que não se tocam é metade ou inteiro? É sob essa premissa que se organiza o drama familiar e humano de As dores delas, romance de estreia da escritora paranaense radicada em Brasília, Ana Raja. No mundo construído pela autora temos uma história habitual: um homem de vida dupla, que se desdobra entre duas casas, duas mulheres e as filhas dessas uniões. Se essa paisagem emocional é comum, história partilhada em muitos lares em todos os tempos e lugares do mundo, é o tratamento sensível dado ao tema e à trama que torna essa narrativa não apenas comovente, mas especialmente densa. Ana Raja, que vem despontando no panorama da literatura contemporânea com um olhar aguçado sobre o cotidiano, por cronista que é, apresenta um mapa vivo, tenso e afetivo das relações construídas sob o signo da mentira e dos desencontros.
Quem narra essa história é Laura, filha da segunda família, que, de criança exilada de uma vida da qual ela deseja participar, acaba por tomar as rédeas da própria existência, se colocando em um protagonismo que é, simultaneamente desafiante e libertador. Annie Ernaux, vencedora do prêmio Nobel, ao falar sobre seu livro O acontecimento, diz que traz à tona uma memória terrível para salvá-la para o futuro. Diz ainda que “a realidade sempre nos escapa. Mas é preciso tentar mesmo assim nomeá-la”. E é essa a operação que a narradora faz, ao procurar o lugar da própria vida atravessada por escolhas que, de partida, não foram suas: nomear a experiência, salvar para o futuro.
Ernaux é aqui convocada por ser essa autora responsável por um certo realce nos debates em torno da autoficção nos últimos anos, e porque é da vida vivida que Raja vai retirar o material de sua fabulação. Observe-se, porém, que Raja não escreve autoficção, mas vai, na própria história, nas memórias e na reconstituição do vivido procurar o fio que dá luz às suas personagens, o que torna esta uma operação complexa, especialmente na construção dos personagens que transitam nessa narrativa, com destaque para o pai e Ana, uma das irmãs. Nesse sentido, um pequeno spoiler: a autora consegue dotar a todos os personagens de dramaticidade, peso, construindo-os como seres da ficção. Isso não é pouco.
Saúdo esse livro, essa estreia. Fiquem atentos a Ana Raja.